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A mostrar mensagens de agosto, 2017

Os Mortos de Suai ou Homenagem Latina a Ma'Hodu

No último trimestre de 1999, o «Diário de Notícias» convidou Fernando Grade para publicar um poema sobre Timor Lorosae. O poema, este que se segue, foi censurado. Nunca veio a lume...Entretanto o poema «Os Mortos de Suai ou Homenagem Latina a Ma'Hodu» foi enviado ao Xanana. Os Mortos de Suai ou Homenagem Latina a Ma'Hodu À memória do maior ficcionista português do século XX: José Rodrigues Miguéis "TUDO malhado a sangue, o coração atingido por facas balas sórdidas dobradas a rasgar a pele, a carne em larva (máscara), olhos castos esburacados. Chegaram então os mortos de Suai. Quando eu soube descia a avenida lisbonesa Almirante Reis, lembrei-me de ti oh Miguéis. Vinham de longe, apareceram pelo meio da tarde as bestas; não eram à solta pássaros densos nem vento d'asas a brilhar, era sangue bom escorrendo massacrado por hienas. E fui contigo (Zé Rodrigues) e com a dona Genciana e com o «Pata- -Choca» e descemos em Díli para lutar contra os chacais. E tínhamos

PIER PAOLO PASOLINI FOI ASSASSINADO NUMA VIVENDA DO ALTO ESTORIL

Pier Paolo Pasolini foi assassinado numa vivenda do Alto Estoril. Jamais em desértica praia italiana ou nos olhos de quem passa contente objecto sexual da Via Venetto foi aqui nesta rua que desce dos Bombeiros para a praia da Poça da minha infância. A casa está rodeada de relva por todos os lados como se fora um barco de cal uma cisterna pouco nocturna e então chegaram os bastardos (foram muitos) com facas guizos sangrentos    serpentes amestradas pela boca todos devagar diante do espelho que estava quebrado no meio da erva e desferiram sobre o corpo de Pier Paolo Pasolini uma flecha venenosa. Mataram-no a sangue frio. Ao cair da madrugada. Numa vivenda do Alto Estoril. Notícias muitas correram mundo davam-no como morto algures em Itália: tinha sido esmigalhado por uma rapariga que vestia de rapaz. Penso que os jornais e as televisões endoidecem de uma doença réptil como a magia dos trópicos: porque Pier Paolo Pasolini morr

Há livros perversos que mordem o pêlo do cão

Há livros infelizes que foram escritos para corroer - à mosca - a casta paciência do cão: o bicho não pode viajar por entre laranjas nem subir ao céu das árvores para sonhar mais perto do caos. o lugar das patas não pode ser denso e muito menos aquecido por vermes. Que focinho? Um cheiro possível de algas e flores ratadas, um sino quebrado. O animal (sentado) espreita côdea que lambe o beato fogo e o bolor. É um artista de almas em salmoira movido a sopas de vinho - os pêlos altos, colados às rachas sulfurosas do muro que foi giestas. A barba do cão faz anos e nesses cabelos a crescer ficamos todos mais velhos. em O Livro do Cão, Estoril: Edições Mic, 1ª edição, 1991, p. 11.

RUA FERNANDO PESSOA

VlVI no Bairro dos Poetas um ano e cinco e dois meses, mais sete dias — quantas horas de treva? —, e as ruas eram sempre pequenas, esmagadas por flores. Havia dois homens que amolavam facas, punham chapéus-de-chuva aptos e joviais para com eles se descer à cidade do Rocio. Um dos homens era novo e gordo; o outro bebia, dizia ser de Cintra quais morangos frenéticos, e tinha colado às veias o fulgor da chuva. Era o seu vinho cimentado em angústias. Estavam combinados como a dádiva do vento ou fungos de astros com sarna: de quinze em quinze tardes, o primeiro homem (às quintas-feiras) e o segundo (aos sábados) assobiavam como cântaros rachados por tesoiras. Às portas e janelas chegavam rostos, vinham do almoço tecido de nêsperas, garfos ou maracotos, olhavam para o amolador de sonhos minúsculos, e sorriam. Alvalade ainda não era a época dos números a rua Fernando Pessoa tinha pedras por trás dos prédios bom vinho, coelhos a crescer, leite. Ao tempo eu gostava dos cabelos sedosos

UM PROSOPOEMA – A RAPARIGA DAS DUNAS

É ruivo, semente de cobre, bandeira e volúpia – o corpo que nas dunas abandonas. Porque tu estremeces, e cantas. Ao ver passar para o Norte as bicicletas, bichos enrolados no seu próprio retrato, ainda e sempre subindo a montanha, e a colar cartazes, o trigo, o martelo, lentamente. As velhas vão perder a batalha, olhos de água, olhos de água. Cabelo por cabelo desfolha-se um malmequer, a minha vocação nunca foram as luzes submarinas. Não há cidade mais rebelde e despida do que tu. Contigo lembro as dunas. A humidade misteriosa da romã. Escrevo o aroma do pinheiro que fica submerso em tuas mãos. As bicicletas nervosas sobem, a caminho do Norte. Cada vez mais as dunas confundem-se com o teu corpo ruivo. De rapariga é, também, a areia, o relógio de sol que trazes na cintura, a porta semiaberta para o mar. Não esqueço as borboletas vagabundas. Não esqueças o homem do chapéu encarnado. Os ombros anoitecem em São Pedro de Muel. Aqui estou dono das dunas, e digo: a natureza que se despe

MUITO LONGA MEMÓRIA PARA O POETA RUY BELO

 "Nenhum cristão deve ser mercador"  (S. Jerónimo e Santo Agostinho) Posso estar deitado ao comprido nesta cama as unhas grossas, enormes, os dedos em concha apontando os móveis da casa, e ter a janela aberta de par em par escancarada para o bulício dos carros para os beijos trocados na rua rente ao candeeiro para as mulheres vestidas de preto negríssimo que passam com carregos à cabeça; poderei ter as horas todas para pensar, fumá-las, e saúde muita, o cheiro quase infantil das godécias os retratos de oblíquas viagens pela praia fora, mas nenhum silêncio flor ou ave doida fará esquecer         a tua morte longínqua nos antípodas (não foi em Queluz?), e regressas assim a estas paredes de musgo bom donde os teus versos nunca saíram, o riso que deixavas na água, os teus versos, o alto poema: gaivota viajada por dentro de casa e tão dada ao sossego, tão de cereja a boca que soltaste sobre os rios, o mar saloio. E pó de pedra e ranço n

CAPRICORNIUS

Vieste das praias do Norte para deitar fogo à minha cama. Chegaste sem gestos, sem a lenda de todas a mais bizantina, sem arcos de triunfo, mas também sem tristezas. Vi nos teus olhos o amor dos anormais pelo incêndio, pelas ambulâncias que retalham o nevoeiro e talvez a carne do medo. Depois fugiste do meu quarto em vulcão gritando que Creta nem valia um homem e que deixarias colados nas paredes com bolor os treze pássaros mortos de que falam as escrituras. Por essa tatuagem cheiras a sangue cru, nem mesmo no centro da cidade a raiva vai ter bolos e cigarros. (In antologia “800 ANOS DE POESIA PORTUGUESA” Círculo de Leitores, Lisboa, 1973)

Memento por um coração que ladra

O cão que mais ganir é francês, eco nostálgico de uma Bretanha em fúria, uvas sangrentas, espelho ratado pelo sítio do umbigo. Um bicho que gane merece os ardis todos e sulfúricas desgraças. Dá-se ao animal o que vier do medo (rebuçado com buço de sapo) e as máscaras do Lácio passam. Então ser voada flor em chaga ou simples cão já não atrapalha nem é trapaça. Um coração que ladra tem sempre boa raça. Fernando Grade

O povo manda no rio

Aqui estou, doido de gaivotas, no sítio onde O povo manda no rio, aqui estou Com Annie nas margens do bucólico rio Almançor. Agora conheço, sabemos o peso do trigo, Somos, não, sou, perdão, Não quero ser perito em almas (em ervas), Seremos somente, não, serei mestre em cores E venenos. Annie, não deixes que o tempo envelheça Sobre os teus lábios Que encobrem o mistério mais audaz da minha vida. É o virar do Verão, O acrobático cair dos gladíolos. Todos os venenos estão contados, Menos aqui onde o povo manda no rio Almançor: Vieram as alfaias, os punhos de terra ocra E na terra em sangue, entre o basalto que Não há e os pássaros, entre as charruas vedras, O povo mudou o trajecto das águas, E as águas, Annie, já não são corruptas: Cheiram a corpo descalço e a mel, Cheiram a pão. Fernando Grade