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O SOM E A PALHA Ouço todas as tardes em Amsterdam um martelo de plástico a destruir um muro feito de pedra rija. Música repassada de água como os bichos no meio do feno ou apenas uma romã. Gesto polaco algures nas florestas do Norte. E todas as tardes o martelo vai e vem sobre o musgo seco. A pedra, sim, está por baixo e contente, na sua felicidade de ser pedra eternamente Amsterdam – 1971 (in antologia pessoal ’25 Anos de Poesia Antologia 1962-1987’. Edições Mic – Colecção Salamnadra / 12. Estoril, 1988)
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O MAR PASTOR

A S vezes chovia e eu estava longe de casa tinha o mar por pastor. Os outros seguem com os olhos em flecha os dançarinos que vão bailar o medo partem com uma única escova de dentes e um pão por cheirar. Será uma viagem igual a um disfarce de fuso horário ou apenas uma mancha de ferrugem a cresceer em corpo magro de rapariga. Levaram um cheiro de veludo, qualquer pulso livre para estrangular a noite, não fizeram perguntas não quiseram saber de chuva ou gardénias — Mamã quer pouco —, as túnicas ardiam, deixavam de ser eternas havia poucas viagens de sal até aos bosques. A luz nocturna em flecha mordeu-me os pulsos qual rato teórico ou luar do deserto a poisar na roupa esfarrapada. Pó de uvas ou pó das ervas? O leitor não gosta muito de tecedeiras porque há um lume sujo que cresce pelo terror acima logo de manhã no incêndio do mijo. Ou o único beijo feliz não passasse de um insecto tolo. Sem rancor ou peste, às vezes chovia e eu estava long

NATAL FILMADO NO CAMPO

FERNANDO GRADE NATAL FILMADO NO CAMPO à memória de Júlio-António Salgueiro F lauta simples, o Eufrates é o quarto rio, oh menino Cristo que morto ou vivo nunca serás da Babilónia. Mas dizem que vais nascer de novo, necessariamente longe dessas margens lábeis, como todos os anos acontece por esta altura. Vão trazer a música e os enfeites, dois abetos, talvez algumas broas, um aroma de queijo suíço, pequena ovelha feita de barro mal pintado. O Natal porém é diferente de corpo para corpo. O cuspo. Havia um velho que se metia com as raparigas a horas certas, nas pastelarias, no coreto da avenida, na relva que dava para os cisnes pretos. Velho de boca martelada de trapos que dizia ter vivido em muitas guerras. Era esse o seu Natal: sentir que o próprio sexo, réptil, lhe subia aos olhos como no tempo dos bailes, formiga ácida no interior, os dedos. Na gasolina queimada ou por entre o centeio, perde-se o Natal. Há pessoas a quem isso aconteceu há cinco minutos por­que, entretanto

Soneto de Natal

in PEQUENA ANTOLOGIA DE NATAL, 1977

Os Mortos de Suai ou Homenagem Latina a Ma'Hodu

No último trimestre de 1999, o «Diário de Notícias» convidou Fernando Grade para publicar um poema sobre Timor Lorosae. O poema, este que se segue, foi censurado. Nunca veio a lume...Entretanto o poema «Os Mortos de Suai ou Homenagem Latina a Ma'Hodu» foi enviado ao Xanana. Os Mortos de Suai ou Homenagem Latina a Ma'Hodu À memória do maior ficcionista português do século XX: José Rodrigues Miguéis "TUDO malhado a sangue, o coração atingido por facas balas sórdidas dobradas a rasgar a pele, a carne em larva (máscara), olhos castos esburacados. Chegaram então os mortos de Suai. Quando eu soube descia a avenida lisbonesa Almirante Reis, lembrei-me de ti oh Miguéis. Vinham de longe, apareceram pelo meio da tarde as bestas; não eram à solta pássaros densos nem vento d'asas a brilhar, era sangue bom escorrendo massacrado por hienas. E fui contigo (Zé Rodrigues) e com a dona Genciana e com o «Pata- -Choca» e descemos em Díli para lutar contra os chacais. E tínhamos

PIER PAOLO PASOLINI FOI ASSASSINADO NUMA VIVENDA DO ALTO ESTORIL

Pier Paolo Pasolini foi assassinado numa vivenda do Alto Estoril. Jamais em desértica praia italiana ou nos olhos de quem passa contente objecto sexual da Via Venetto foi aqui nesta rua que desce dos Bombeiros para a praia da Poça da minha infância. A casa está rodeada de relva por todos os lados como se fora um barco de cal uma cisterna pouco nocturna e então chegaram os bastardos (foram muitos) com facas guizos sangrentos    serpentes amestradas pela boca todos devagar diante do espelho que estava quebrado no meio da erva e desferiram sobre o corpo de Pier Paolo Pasolini uma flecha venenosa. Mataram-no a sangue frio. Ao cair da madrugada. Numa vivenda do Alto Estoril. Notícias muitas correram mundo davam-no como morto algures em Itália: tinha sido esmigalhado por uma rapariga que vestia de rapaz. Penso que os jornais e as televisões endoidecem de uma doença réptil como a magia dos trópicos: porque Pier Paolo Pasolini morr

Há livros perversos que mordem o pêlo do cão

Há livros infelizes que foram escritos para corroer - à mosca - a casta paciência do cão: o bicho não pode viajar por entre laranjas nem subir ao céu das árvores para sonhar mais perto do caos. o lugar das patas não pode ser denso e muito menos aquecido por vermes. Que focinho? Um cheiro possível de algas e flores ratadas, um sino quebrado. O animal (sentado) espreita côdea que lambe o beato fogo e o bolor. É um artista de almas em salmoira movido a sopas de vinho - os pêlos altos, colados às rachas sulfurosas do muro que foi giestas. A barba do cão faz anos e nesses cabelos a crescer ficamos todos mais velhos. em O Livro do Cão, Estoril: Edições Mic, 1ª edição, 1991, p. 11.