FERNANDO GRADE
NATAL FILMADO NO CAMPO
à memória de Júlio-António
Salgueiro
Flauta simples, o Eufrates é o quarto rio, oh menino
Cristo que morto ou vivo nunca serás da Babilónia. Mas dizem que vais nascer de
novo, necessariamente longe dessas margens lábeis, como todos os anos acontece
por esta altura. Vão trazer a música e os enfeites, dois abetos, talvez algumas
broas, um aroma de queijo suíço, pequena ovelha feita de barro mal pintado.
O Natal porém é diferente de corpo para corpo. O cuspo.
Havia um velho que se
metia com as raparigas a horas certas, nas pastelarias, no coreto da avenida,
na relva que dava para os cisnes pretos. Velho de boca martelada de trapos que
dizia ter vivido em muitas guerras. Era esse o seu Natal: sentir que o próprio
sexo, réptil, lhe subia aos olhos como no tempo dos bailes, formiga ácida no
interior, os dedos.
Na gasolina queimada ou por entre o centeio,
perde-se o Natal. Há pessoas a quem isso aconteceu há cinco minutos porque,
entretanto, morreram. Outras vão perdê-lo daqui a um quarto de hora. Ninguém
sabe de nada. Riem-se: a boca muito grácil. Fazem cálculos galhofeiros: «o peru
vai dar um bom pitéu.» E sublinham então, no cheiro envinagrado do azinho, que
tu és o Cristo nascido numa aldeia de estábulos, ao fundo da Palestina.
O vento passa sobre o
restolho.
Estrela de todos os
roussinóis vagamundos, mendigos, explorados e secos de alma, pela terra fora
foste ganhando muitos nomes (consoante o sítio, as begónias, as línguas em que
eras falado), e cada qual
tira das tuas palavras a raiz ou o abutre, os sinais na água, e que melhor
convém à particular filosofia, aos utensílios, aos biscoitos próprios.
Não há dúvida: pertences
ao grupo profético dos guerrilheiros que desejam os frutos da terra para toda a
gente, e surges de um local bucólico sem manequins ou aviões leprosos: eras o
dardo e a corça, o feltro magnético; nunca tiveste jeito para usar máscaras de
chuva.
(«Livra-me, ó Senhor, do homem mau; guarda-me
do homem violento; os quais pensam o mal no coração; continuamente se ajuntam
para a guerra.»)
E foste servo, rei nu e
também semente sob as planícies do Egipto, e tens sido emblema-mor em toda a
parte, até aqui onde nasce azulado de frio o mesmo menino, a mesmíssima cabra
aquecendo os sempiternos estábulos da tribo de Judá, oh cavadores de terra preta.
Emanuel ou Deus, tanto faz, porque é de novo a
cidade verde das violas pousadas na água: o quarto rio é o Eufrates. E, quando
o povo sente que tu nasces, é a tarde e a manhã o dia primeiro, na hora nona
destroem-se bichosas tristezas, e as águas e o barro foram salgados com fogo,
oh sábios de ventre de camurça, que retendes assim (na boca n gafanhoto lindo do Mar Morto
esta carne de inverno, a lenha molhada nos músculos, bicho
assoprado, os aromas; e é por isso que a lei das mulheres é pouco romana como
óleo de mirra. Era a alta resina das parábolas, virava-se à esquerda para Belém
de Judeia, onde tu nasceste.
E Nazaré fica mais ao Norte, passam por lá carros de
bois,
o sítio junto das cítaras, os ventos do Galaad
(«Aguçaram as línguas
como a serpente; o veneno das víboras está debaixo dos seus lábios.»),
e a baba sobe
por entre as telhas, centeio lacustre e lagartixa. As cidades da campina jamais
serão habitadas, porque as aves descem, hirtas, sobre os mortos. A testa
froixa. Paisagem de Sodoma. As servas egípcias cantam, saudosas do cheiro
mágico dos homens, o humus sexus, e de umas para as outras falam de água, a
língua, a fonte a caminho de Sur. E nisto alguém recorda que, aos noventa e
nove anos, Abraão foi circunciso. Filma-se o campo, as formigas das futuras
catacumbas. Aqui está, medroso,
o
rio de sal. Os burgueses pensam: «o peru vai
dar um bom pitéu.»
Emanuel menino, sem o
som bravio das pandeiretas, livra-se das nuvens e cresce em sabedoria. De chuva
foi crismado, as vestes luzidias. Os bichos-nossos-anciães, nossos herdeiros,
bandeiras agitadas sobre os estábulos, adormecem. Os sinos incendeiam-se.
Remiram-se os pobres e descobrem que pobres ainda são. Quem escondeu o maná, os
potes de mel?
A natureza então
curva-se sobre si mesma: o barro, o jumento silvestre, o barranco amortecido
pela música. Envenenai os búfalos, oh bondosos da noite. Os querubins
transformam-se em água sibilina.
(Paz
na Terra aos homens de boa vontade!)
De carne e osso rijos, rosto solar, aparece
agora, em todos os vales de Savé, Cristo guerrilheiro da Galileia, magnetizador
de olhos cilíndricos, filho único do grande rio arménio.
É Natal.
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