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Manifesto Desintegracionista


"SINAIS DOS TEMPOS

1 — O homem de hoje tem os olhos voltados para o Espaço, através do qual anseia libertar-se da sua condição telúrica, sem contudo desejar evadir-se da sua condição humana. Simultaneamente, procura captar novas fontes de energia para as utilizar na transformação da vida, num domínio sempre progressivo das forças naturais.

2 — Na aventura da conquista espacial — aventura em que damos os primeiros passos nos nossos dias o homem procura unir-se, independemente da sua nacionalidade, em idêntica sofreguidão de espaço livre a prospectar, de universo a reconhecer e a conquistar.

3 — Não é de hoje a curiosidade e a tentativa humana de projecção para alem do globo terrestre, na mira de se libertar da lei da gravidade. Cientistas, filósofos, artistas, em todos os tempos, sempre foram atraídos para os mistérios do universo exterior. As obras que criaram dão-nos conta da inquietação humana ante os mundos desconhecidos que nos contemplam. Antigas civilizações, através do testemunho de velhos documentos, trazem até nós a narração de factos que comprovam a atracção que o Cosmos sempre exerceu no espírito humano.

4 - Hoje que a gravidade foi vencida, que o homem conheceu pela primeira vez o estado de imponderabilidade; hoje que o homem conseguiu a desintegração do átomo e procura utilizar a energia nuclear na melhoria das suas condições de vida; hoje, quando estamos no limiar de uma nova revolução industrial que transformará toda a existência da humanidade; hoje, o homem artista, como não podia deixar de ser, começa também a voltar-se para temáticas novas, a reflectirem e a traduzirem as inquietações e as realizações modernas.

5 — A grande aventura científica do homem do futuro está já a ser realizada por homens de hoje, lutando corajosamente por dominar as forças naturais, — do espaço terreno e do espaço que está para além da Terra. As sociedades futuras poderão assim ser mais perfeitas e o homem mais liberto. E assim os homens de hoje que, tripulando as naves soviéticas ou americanas, saem da esfera de atracção terrestre para o espaço sideral, têm a esperança de toda a humanidade a incitá-los.

DESINTEGRACIONISMO

6 — O desintegracionismo, como movimento poético português, quer ser a voz desse homem positivo que voa para o Espaço porque necessita da Terra.

7 — O desintegracionismo é uma concepção que se desdobra em premissas várias. De início, é um embrião que se forma, um núcleo que se irradia. Embora se apresente em fase de experiência inquiritorial, aspira a ser a tese de um processus dialéctico em desenvolvimento.

8 — Mas o desintegracionismo reclama-se já de um conteúdo essencial. Para a expressão artística desse conteúdo, procuram-se as formas correspondentes que plenamente o realizem e sem as quais nenhuma arte que o intente ser, atingirá autenticidade e consequente validade.

9 — A essencialidade do desintegracionismo, que o mesmo é dizer, por enquanto, a da sua poesia, está numa presciência do que será o homem futuro, nuclear e espacial. Este se antolha aos desintegracionistas o estádio próximo da evolução humana.

10 — O desintegracionismo abraça a realidade. O mundo real é o que se nos oferece antes de mais nada. Se assim não fora, o homem não buscaria compreender, captar e transformar o mundo subjacente à realidade que lhe é imediata. Mas o desintegracionismo não prescinde da imaginação no seu processo criador. Tão válida como a pesquisa científica é a pesquisa artística. Tão válida como a realidade é a imaginação que a ela se aplica.

11 — Assim, o desintegracionismo, se busca ir ao encontro das descobertas do nosso tempo em todos os campos da ciência, não procura fazer «cientismo» em arte, mas aproveitar-se dessas descobertas para um alargamento da realidade artística.

12 —O desintegracionismo interessa-se vivamente pelos problemas sociais, mas entende que eles não podem ser encarados apenas na forma simples de oposição das classes sociais. E como a própria dialéctica nos informa, outros factores estão a intervir na luta que o homem trava para resolver os problemas de planificação económica e do devir intelectual e moral da espécie humana.

13 — No panorama da moderna poesia portuguesa, verifica-se que certas das suas correntes se estão manifestando em fórmulas que parecem ultrapassadas. A poesia cuja problemática típica é a de carácter social, detem-se em temas restritos e de expressão formal pouco evoluída. Por outro lado, a poesia que cultiva quase exclusivamente a originalidade formal, fazendo quantas vezes pura concorrência às artes gráficas, ignora ostensivamente a problemática humana da realidade social. Ora o homem de hoje, encontrando-se em evolução para novas sínteses, solicita da poesia a sua atenção para a necessidade de esta exprimir uma problemática do homem geral — tão interessado em solucionar os seus problemas imediatos, como os que lhe assegurem uma continuidade da sua posição no universo, através do progresso científico e tecnológico. Daí a necessidade de uma deslocação poética, logo estética, que procure exprimir a realidade desse homem geral.

14 — Caminhando resolutamente para um tal objectivo, o desintegracionismo poderá considerar-se assim uma vanguarda-ponte, que parte de ramificações anteriores para intentar uma reintegração de novos valores poéticos. O homem, como ser pensante e actuante, procura sempre a aventura, busca penetrar no desconhecido, embora partindo de algo que antes dele e para trás dele existiu. O artista desintegracionista sabe que não há arte sem aventura, que muitos caminhos da arte estão ainda por descobrir e desbravar e que o espaço sideral e a energia nuclear necessitam dos seus modernos cantores.

15 — Daí a sua ambição de ser uma arte para o futuro, arte poética por agora, mas na esperança de que os diferentes géneros artísticos possam vir a interessar-se por uma expressão desintegracionista.


ANOTAÇÕES PARA A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DESINTEGRACIONISTA


16 — O homem camponês encontra no seu habitat campestre os termos de comparação para a sua vida emotiva, tal como o operário os encontra na dinâmica da vida fabril. O artista desintegracionista procurá-los-á na totalidade da vida e consequentemente também no espaço, no infinitamente grande, no infinitamente pequeno, no adimensional, nas forças sempre em transformação da natureza, e nos movimentos criadores das sociedades humanas.

17 — Os canais de Marte poderão assim interessar muito mais o poeta desintegracionista de que os jardins românticos; os anéis de Saturno poderão ser mais líricos que as gôndolas de Veneza; a desintegração do átomo e os reactores nucleares serão mais intrigantes e emotivos do que um castelo da Escócia.

18 — A relação do mundo astro-físico com o mundo sexual, intentada pelo desintegracionismo, visa a sublimação do amor, num sentido de expressão universalista da sensibilidade humana.

19 — O lirismo é uma constante da poesia portuguesa. O lirismo é uma constante de qualquer poesia. Nenhuma linguagem poética lhe poderá fugir. O desintegracionismo não lhe foge e até o reclama, como manifestação de continuidade válida no processo de toda a criação poética de hoje.

20 — O desintegracionismo envolve na sua estrutura o conceito de desintegração nuclear.

21 — Partirá da explosão duma ideia-chave, provocando o fluir de ideias e imagens relacionadas e criando no leitor o desenvolvimento de ideias concorrentes.

22 — A poesia é o meio explosivo, conveniente e necessário; é o meio de irradiação, conveniente e necessário; é o meio de sugerência, conveniente e necessário.

23 — O desintegracionismo parte da desintegração das ideias poéticas na gestação do poema (ou de qualquer diferente manifestação de arte) para uma integração de ideias na sua assimilação.

24 — Cada ideia é um átomo em irradiação. Cada átomo é uma unidade de equilíbrio. Átomos permutando-se com átomos em novas estruturas. Estruturas permutando-se com estruturas, em novos trajectos.

25 — Átomo é um leitmotive, já que do átomo se degride ou progride para.

26 — O método de progressão imagística é o processo dialéctico: tese, antítese, síntese.

27 — O desintegracionismo é um modo de estar no tempo e no espaço.

28 — O desintegracionismo expressa mais esperança que dúvida, mais libertação que angústia.

29 — O desintegracionismo parte de uma realidade humana para uma interpretação anímica.

30 — O desintegracionismo é um optimismo firme sobre a realidade humana; é a crença inalienável na possibilidade de expressão dessa realidade.

31 — O desintegracionismo envolve nas suas premissas uma consideração dos fenómenos parapsi-cológicos, como reivindicação das descobertas da nova psicologia.

32 — O desintegracionismo acredita no ciclo vital do homem nasce nu; vestem-no; encontra-se alienado por condições e circunstâncias; começa a despojar-se de atavismos perfazendo, assim, um ciclo vital que lhe traz a noção dos valores universais, das constantes cósmicas e da sua simples realização como ser humano.

33 — A consciência desintegracionista é de natureza dualista: ab interioribus ad exteriora, porque consciência e necessidade imanente à fisiologia intelectual de cada indivíduo; ab exterioribus ad interiora, porque marcha voluntàriamente ao encontro do desconhecido.

34 — O desintegracionismo procurará transpor os obstáculos que separam as diferentes artes, estreitando-as numa comunidade ou familiaridade de acordo com a sua origem comum.

35 — O desintegracionismo visa acompanhar o formidável salto que se processa no desenvolvimento científico e nas realizações técnicas subsequentes.

36 — O desintegracionismo é um movimento evolucionista, (de características dialécticas), o que se quer deixar afirmado."

in "Desintegracionismo", 1965

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